sábado, 14 de maio de 2011

Ficar

Apareço para escrever. Escrevo. Escrevo estas linhas que são tortas antes de o serem. O que quero está muito longe desta realidade. Quero outro chão, outro sol, outra lua… quero um horizonte que não acabe lá ao fundo, onde tudo parece não chegar. Quero estar sem pensar que estou de passagem, quero raízes que me prendam à terra que me viu crescer, ao chão que deu vida aos meus sonhos. Quero viver, quero sonhar… quero acordar e voltar, voltar, voltar e ficar de vez.

terça-feira, 10 de maio de 2011

não há motivo para te importunar a meio da noite

não há motivo para te importunar a meio da noite
como não há leite no frigorífico
nem um limite traçado para a solidão doméstica.



tudo desaparece.
nada desaparece.
tudo desaparece antes de ser dito
e tu queres dormir descansada.


tens direito a um subsídio de paz.


se eu escrever um poema
esse não é para te importunar.


eu escrevo muitos poemas
e tu trabalhas de manhã cedo.


toda a gente sabe
que a noite é longa.
não tenho o direito de telefonar
para te dizer isso.


apesar dessa evidência
me matar agora.
e morro.
mas não morro.


se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste?
se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?
ou não atendias.


e eu ficava aqui.
com a noite ainda mais comprida,
com a insónia.


com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.


José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis